"Numa noite enluarada as bruxas pegaram uma barca do Reconquinho e foram de abalada até à Índia" |
A obra Portugal Lendário
– Tesouro da Tradição Popular, de José
Viale Moutinho, publicada em 2013 pelo Círculo de Leitores, inclui a lenda “As
bruxas do Reconquinho”. Em 2008, o relatório de Gestão da Câmara Municipal regista que a Unidade de Acompanhamento e Coordenação (UAC) dinamizou uma Feira à Moda Antiga com animação de rua subordinada ao tema “As bruxas do
Reconquinho vão à India”. Já Martins da Costa, no jornal Nova Esperança, havia recordado esta história. Além de grande
pintor, foi também um grande escritor. Ninguém melhor do que ele para recontar
esta lenda. Assim, das suas crónicas "Ao Correr da Pena” (Novembro de 1987), passamos
a transcrever:
AS BRUXAS DO RECONQUINHO
Conta a tradição que, numa noite enluarada as bruxas pegaram
uma barca do Reconquinho e foram de abalada até à India.
Isto passou- se no tempo em que o rio Mondego era sulcado
por grandes barcas chamadas «serranas», que iam do Parto da Raiva à Figueira da
Foz transportavam produtos, destinados ao comércio da zona ribeirinha.
A vida do rio tinha pois uma grande importância para as
populações que em grande parte dele dependiam e as lendas e narrativas a que
dava origem eram muitas.
Era ainda o tempo, das gentes de poucas letras ou nenhuma
que, pela transmissão oral, contando e recontando à lareira nas longas noites
de inverno, estabeleciam a memória dos tempos idos.
E, enquanto os dedos
se afadigavam nas rotineiras tarefas de fiar a lã ou de com ela confeccionar as
grossas meias e camisolas destinadas aos barqueiros, lá vinha o pedido de mais
uma história, geralmente contada pela pessoa mais idosa do grupo.
E foi assim que,
ouvida pela minhas bisavó e contada à minha avó e depois por esta de novo aos
filhos o pela minha mãe a mim o aos meus irmãos que, esta história de bruxas,
objecto desta crónica o ainda a outras de fadas e lobisomens chegaram ao meu
conhecimento, povoando de imagens fantásticas os sonhos da minha infância.
Era no tempo em que ainda havia bruxas e que, aqui em
Penacova, segundo reza a tradição, era coisa que não faltava. Não era bruxa
quem queria e os membros eleitos auferiam direitos sociais importantes: cair em desgraça, relativamente à bruxa, era
mal que ninguém queria já que, dum simples mau olhado ou de mistela preparada com os mais estranhos
ingredientes, com rezas e defumadoiros à mistura, grandes desgraças poderiam advir.
O Reconquinho, curva do rio bem conhecida de todos os que
aqui vivem ou vêm passar as férias de verão, era pelos vistos, um dos locais
habitualmente frequentados por essas «mulheres de virtude» como também eram designadas.
Um pouco mais adiante ainda hoje existe uma velha casa, ponto de referência
obrigatória e mencionada como a “casa da bruxa».
Os barqueiros, pelo que se infere da lenda, também ali
faziam local de amarração e pernoita e assim, numa noite de lua cheia, uma das
barcas foi desamarrada com todas as cautelas e com artes de bruxedo,
transportada até à Índia distante, onde as bruxas nessa noite tinham encontro
marcado.
A bordo da nave, e ignorado, ia o barqueiro que nessa noite
ali dormia num dos arrumos da proa e que, só muito longe e já no mar alto, deu pela
insólita viagem em que também era participante.
Cheio de medo, como é de calcular, para ali se deixou ficar
encolhido, assistindo multo admirado a tudo o que se passou e que viria a
contar no outro dia de manha quando as bruxas, com as mesmas cautelas da noite
anterior deixaram a barca amarrada no Reconquinho.
O difícil foi fazer-se acreditar pois, coisa assim nunca se
vira. Mas, para comprovar o que afirmava, lá estava, na sua barca um bonito
ramo florido que, às escondidas,
apanhara , na praia onde as bruxas tinham feito os seus bailados e que,
tão bonito e tão diferente, nunca fora visto nestas terras.
0 nome das bruxas, esse nunca o mencionou pois, ao que
consta foi ameaçado de morte. Mas, à boca fechada,
passaram a ser apontadas certas mulheres que, pela forma isolada como viviam e
sobretudo pelo fogo do seu olhar, bem podiam ser algumas dessas tais, das que
por artes de magia eram capazes de numa
barca serrana fazer, numa só noite, uma
viagem de ida e volta à Índia.
E ainda outras coisas mais em que, só o pensar nelas, até
nos causam arrepios.
É que, como o outro, «eu cá não acredito em bruxas, mas que
existem, lá isso é verdade!...
Martins da Costa
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