A história que vamos recordar chegou ao nosso conhecimento através do jornal Notícias de Penacova. Nos inícios dos anos 60 este jornal publicou um conjunto de crónicas intituladas "In Illo Tempore..." assinadas com o pseudónimo Zé do Mirante. A par de outros temas sobre Penacova e o concelho, o articulista relata com algum pormenor um facto que terá acontecido na vila nos finais do séc. XIX. O texto não apresenta datas nem nomes completos, mas ao procurarmos noutras fontes referências ao Dr. José Ferreira, citado na crónica, somos levados a crer que de facto se trataria de José Ferreira Seco de Figueiredo e Queiroz ( 1827-1889) , bacharel de Direito e Recebedor da Fazenda em Penacova. Casado com Joaquina Emília Augusta de Melo (1827-1896) fora também Presidente da Câmara de Poiares e ainda Deputado às Cortes.
A história que vamos recordar chegou ao nosso conhecimento através do jornal Notícias de Penacova. Nos inícios dos anos 60 este jornal publicou um conjunto de crónicas intituladas "In Illo Tempore..." assinadas com o pseudónimo Zé do Mirante. A par de outros temas sobre Penacova e o concelho, o articulista relata com algum pormenor um facto que terá acontecido na vila nos finais do séc. XIX. O texto não apresenta datas nem nomes completos, mas ao procurarmos noutras fontes referências ao Dr. José Ferreira, citado na crónica, somos levados a crer que de facto se trataria de José Ferreira Seco de Figueiredo e Queiroz ( 1827-1889) , bacharel de Direito e Recebedor da Fazenda em Penacova. Casado com Joaquina Emília Augusta de Melo (1827-1896) fora também Presidente da Câmara de Poiares e ainda Deputado às Cortes.
Assim sendo, os factos remontarão a 1888-1889, pois a data da sua morte (suicídio) ocorreu em 14 de Fevereiro de 1889 na Quinta da Boiça em Sto André de Poiares.
Eis pois, a transcrição do texto publicado nas páginas do Notícias de Penacova de 1962:
I
Um dia logo de manhã,
foi a vila posta em sobressalto. Eram os homens válidos das povoações de Chelo.
Chelinho e Rebordosa, armados de cacetes em atitude revolucionária. Eram sarreiros
que vinham dispostos a desancar, liquidar, o Escrivão da Fazenda, porque os
tinha colectado arbitrariamente, sem olhar ao direito e à justiça.
Ainda deverá existir,
em alguns daqueles povos algum velhote, bem velhote, que se lembre desta
manifestação de força, de aventura e desafronta...
Ora o José Miguel, de
prestígio pessoal e político da região, já tinha vindo com o António Lopes,
também homem de respeito de Chelo, e talvez o maioral dos sarreiros, expor ao
escrivão da Fazenda a engrenagem do negócio do sarro, pois que não passavam de
angariadores de adegas espalhadas pelo Portugal vinhateiro, mas por conta e
financiamento do verdadeiro industrial do Porto. Eles, sarreiros, somente
extraiam o sarro das vasilhas com o auxilio dos moços ( ou criados) e
apresentando a mercadoria ao patrão do Porto, recebiam as suas jornas e
ajustavam contas.
O escrivão da
Fazenda, como então era tratado, e se a memória é firme e não me atraiçoa, se
chamava Viriato, não atendeu às reclamações destes, agravou o caso, tributando
também os moços (ou criados) dos sarreiros que fossem menores. " Aqui é
que ardeu Troia" e aí vinham todos fazer barulho, fazer valer os seus
direitos a cacete e queimar a papelada...
Objectos utilizados pelo sarreiro ( Expo Artes e Cultura - Lorvão 2012 fotos de Penacova Online) |
O prudente José
Miguel tinha vindo à frente montado na sua fiel e pacata burrinha, dar aviso
aos chefes políticos de que era devotado amigo.
As repartições foram
encerradas e o Viriato não se sentindo em segurança na hospedaria da ti
Levradia (mais da tarde da srª Altina do Amaral) pediu asilo ao vizinho Dr. José
Ferreira que generosamente o acolheu e hospedou, entregando-o aos cuidados e
vigilância da incomparável esposa D. Joaquina de Melo.
Toda a gente sabia
que o Dr. José Ferreira era o Recebedor responsável e amigo de sempre, o
honradíssimo compadre de toda a gente. Aquela casa era sagrada; ali minguem lhe
tocaria!
Quem diria que o
Viriato, cobardão e medroso, tornado cordeirinho naqueles dias, viria a ser o
carrasco do seu salvador?
Mas vamos assistir
aos tumultos e possíveis desacatos dos sarreiros.
Como as Repartições
estavam fechadas, andavam aos montões, rua a baixo , rua acima, a dar vivas
aos regeneradores e aos progressistas ( não era época de
eleições) e espalhafatosos morras ao Viriato, que, tão fortes como
trovões ou como o dobrar os sinos a funeral, se ouviriam em Chelo.
O que é certo, e
torna evidente destacar, é a moral daqueles povos ao fim de algumas horas de
furor, gritaria, de beberricar pelas tabernas, de esfacelarem os paus nos muros
e nas paredes, não partiram um vidro, não queimaram a papelada...e não fizeram
desacato algum! Com prudência ouviam-se as advertências das autoridades e até
iam acalmando com a promessa de os políticos irem a Lisboa resolver o assunto a
seu contento.
Recordo muito bem de
dois famosos auxiliares do sossego, que com umas pancadinhas amigas num, com um
segredo ao ouvido deste e uma anedota brejeira àquele, iam empurrando os
sarreiros amotinados para suas casas. Merecem registo os seus nomes e qualidades.
Um era Joaquim de
Andrade, de Miro; o outro Joaquim Pechim, da Mata de Carvalho, se bem me
recordo, ambos afilhados do Dr. José Ferreira. O primeiro era auxiliar e quase
permanente à frente da Recebedoria da qual o padrinho era o responsável; o
segundo, o Pechim, era com "um procurador honorário ou notário privativo
dos dinheiros e rendas do Dr. José Ferreira, espalhados por toda a Comarca.
Mais tarde tive nas minhas mãos e li, muitos "Títulos de Confissão de
Dívida" escritos pelo Pechim e pelo sr. Luís Lopes (outro notário popular)
que foram esquecidos ou perdoados. Estes "Títulos" tinham a
curiosidade, sendo a moeda corrente os mil réis, em tal se não falava nem tão
pouco em libras; era somente - tantas "moedas" - cujo valor era de 4
800 réis (4$80) cada.
Ora estes figurões
que acima descrevi, eram conhecidíssimos no meio dos amotinados sarreiros e
portanto eram obedecidos e respeitados. Alguma razão tinha o Andrade, de Miro,
de me dizer, quando eu já fazia a barba, que tinha sido o rei de Penacova!...Lá
tinham as suas razões de realeza que a história não registou...
Quem mais gozou com
as arruaças foi a garotada; colaborou rijamente nos morras ao Viriato quanta
antipatia e raiva lhes merecia.
Ah! mas a rixa com os
sarreiros não findou; nem a paz e sossego para os habitantes da vila e nem a
vingança do Viriato estava quite com uns e outros; aqueles porque o ameaçavam
de morte e estes porque lhe negaram apoio.
A festa ia, pois,
principiar.
Um ou dois dias
depois e tudo em tranquilidade, andavam uns tantos gaiatos em Santo António,
nos jogos próprios da idade (então não havia muro ou qualquer resguardo fora do
alpendre) quando um dos miúdos - como tenho tão vivo na memória este caso! -
viu que à Várzea vinham soldados a cavalo e outros, muitos, a pé, com cornetas
e tambor a tocarem!
O alarme foi como o
desabar da tempestade. De todos os pontos voltados ao Reconquinho, corriam,
gritavam, rebolavam pelas encostas à estrada de Coimbra, os rapazinhos e até os
grandes, ao encontro daquela maravilha inesperada e nunca vista!
Naquele tempo não
havia qualquer ligação com a estrada para Coimbra a não ser o caminho estreito
e mau pelo Cidral ao Chafariz. Pois por aí vinham os soldados e cavalos, à
mistura com o batalhão de garotos.
Os mirones da vila
encontraram-se na Costa do Sol.
Como a crónica já se
vai estendendo para além do que permitido é o espaço do nosso jornal, eu
terminarei com outro número de o "Notícias", pois vale a pena trazer
ao conhecimento do nosso povo um caso que emocionou dois concelhos.
II
Como já dissemos, o
único caminho que ligava Penacova com a estrada de Coimbra, era o acanhado
caminho do Chafariz-Cidral. Pois era por aí que subiam os soldadinhos que iam
ser os dominadores da vila.
Logo depois o administrador
do concelho, Dr. Amaral, hóspede e parente do Sr. Constantino, bisavô da Ex.ma
srª D. Maria José Leitão, que eu mais tarde viria a reconhecer como Conselheiro
Presidente da Relação em Coimbra, mandava o seu oficial Joaquim Cabral, do
Castelo, que, de relação na mão, ia distribuindo pelos habitantes da vila o
numeroso grupo de soldados. A garotada é que achava grande honra ter em sua
casa um soldado. Que importava à economia da família, se dividia o seu naco de
broa com o soldado?
Os oficiais, dois ou
três, ficaram hospedados na casa do Conselheiro Alípio Leitão. Um dos oficiais
tinha um cavalo que era o alvo dos carinhos e a inveja dos apreciadores da
espécie; lindo a valer, de caprichosas e grandes manchas brancas e negras.
Mobilizados
carpinteiros para fazerem as necessárias tarimbas e a guarita, que muitos anos
depois fi o refúgio e palácio da garotada, os pedreiros improvisaram uma cas
para a cozinha dos militares e as indis- pensáveis instalações sanitárias, à
moda da época!...
Publicidade de 1948 in NP |
Talvez ainda haja
quem se lembre, de, ao fundo da Pérgula, ser a serventia para a Repartição da
Fazenda, que era onde hoje é a cadeia dos homens, e servia todos os baixos do
edifício. Ao lado da serventia, à direita, era a cozinha, que chegou a ser
taberna do carcereiro António Dias. Nas cadeias então vazias, se instalaram os
militares.
Entretanto os Penacovenses
é que iam amargando as favas aboletando os soldados, alguns sabe Deus com que
sacrifícios e sem culpa nas quezílias dos sarreiros e do Viriato.
Aos oficiais foi
preparado alojamento, onde é hoje a Secretaria Judicial e então sala das
Sessões da Câmara Municipal.
A cavalaria com
grande mágoa dos gaiatos, ao fim de 10 ou 15 dias retirou, acabando o prazer de
a hora certa ver a corrida para o rio à data de água, com o complemento dos
pinotes dos cavalos no areal, e às vezes a fuga de alguns a caminho da vila.
A infantaria esteve
aquartelada na vila - eu sei la? - talvez um ano.
Para a rapaziada o
recreio era permanente, desde o toque da alvorada ao recolher; era o moifar do
casqueiro ao café; do render da guarda ao manducar da bóia, à tardinha.
De maior aparato e
assistência era aos domingos a formatura em frente aos Paços do Concelho, para
a missa na igreja. Os soldados com o fardamento que então usavam com correame
complicado e muito branquinho, com barretinas de metais a luzir como ouro, era
facto imponente. E a fileira dos soldados, que ia do guarda - vento à grade a
meio da igreja, com as baionetas a luzir, com os oficiais à frente de espada em
punho, e os que ladeavam o altar-mor, e no momento da Elevação, à ordem do comandante
e ao toque das cornetas e tambor se prostravam em sinal de submissão? Posso
garantir que aos domingos não faltava à missa conventual nenhum garoto e também
nunca foi tão concorrida...pelas moçoilas! Não faltaram mais criadas para
servir e não mais faltou água fresquinha para a mesa de Carrazedos ou da Quinta
dos Peixes, assim como as três fontes da vila estavam sempre policiadas...
Fonte: Rancho Folclórico "As Paliteiras"de Chelo |
O escrivão Viriato
sentindo as costas no seguro e com a sentinela à porta, redobrou o ataque à
bolsa do contribuinte; não poupava os funcionários que com ele não
colaborassem. Mexeriqueiro, metediço nas vidas particulares, queria dos
empregados confidências sobre o viver pessoal e político do Recebedor. Caçador de
escândalos mexia e remexia papéis, até que, finalmente, encontrou um vale,
ainda recente, do Dr. José Ferreira, de umas dezenas de mil réis! Tinha, pois,
na mão a arma desejada para o seu triunfo: liquidar um homem de valor!
Lealmente não avisou, não esperou um dia, que ele recorresse a um amigo para
ficar logo quite com o Estado.
O Dr. José Ferreira
quando teve conhecimento da patifaria do Viriato, sofreu tal desgosto que
mandou logo aparelhar a égua ao criado António Langão (António São Miguel) que
ainda hoje tem forte geração na Ponte e partiu para a sua quinta da Boiça, em
Vila Nova de Poiares.
Escreveu carta à
bondosíssima esposa D. Joaquina de Melo, aos amigos de Poiares e Penacova e a
horas mortas estoirou os miolos com uma certeira bala!...
Ainda luzia a estrela
d’alva, já o António Langão batia às portas a dar a triste notícia que
rapidamente se espalhou . A tragédia enlutava
dois concelhos. A indignação era total contra o Viriato. Todos lhe
voltavam as costas . A hospedaria
fechou-lhe a porta, não teve quem lhe vendesse um pão. Por favor do seu fiscal
de impostos, um tal Sacramento, que vivia na casa em hoje ruinas, pegada ao
José Félix, ali comeu e dormiu até ao dia...
Os amigos da infeliz
vítima, de Penacova e Poiares, imediatamente se puseram em campo e decorridos
poucos dias o Viriato saía de Penacova escorraçado como um cão lazarento.
Os povos de Chelo e
Rebordosa è que não pouparam de chupa, apupos e foguetório à sua passagem de
barco a caminho de Coimbra.
E a D. Joaquina de
Melo? Essa também saiu para não mais voltar à sua terra. Mais tarde soube por
Arsénio Pimentel que enquanto viveu, era uma verdadeira romagem às 2ªs feiras
para Boiça, de gente de Penacova, a visitar a desditosa viúva.
Poucos anos
sobreviveu ao Dr. José Ferreira, mas sei que nunca lhe faltaram flores de
camélia, que ainda hoje existe, da sua Quinta da Cheira.
***
Esta crónica não é
fruto da fantasia. Não. Os factos são verídicos. Aos poucos ia-os arrancando à
memória e estendendo-os no coradoiro da pureza dos acontecimentos. Levou seu
tempo a estender a cadeia, através dos anos decorridos. Mas, louvado seja Deus,
chegou-se ao fim sem atropelos à verdade, e deu-se a conhecer um caso que
apaixonou a "vila e seu termo".
ZÉ DO
MIRANTE
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